Pais e filhos
Abriram a porta. Primeiro encontraram uma sala de estar
arrumada - até demais - pra dona do apartamento. Alice sumiu por dois dias da
casa de seus pais e havia feito 24 horas que também tinha parado de dar
notÃcias aos amigos. O resultado: suicÃdio. Ela se jogou da janela do quinto
andar, por motivos confusos e misteriosos. Ninguém sabe o que aconteceu.
Entraram no quarto que dava pra janela da tragédia e encontraram só estátuas,
cofres e as paredes pintadas de um jeito nada tradicional. Nada é fácil de
entender.
Dois dias antes naquela mesma hora Hugo editava algum vÃdeo
relacionado a trabalho quando sua campainha tocou. Primeiro pensou em não
atender, quem iria chamá-lo há essa hora numa quarta feira? Alguém insistente,
pois estava tocando repetidamente, como se precisasse ser atendido àquela hora.
Abriu a porta. Encontrou uma Alice irreconhecÃvel. Maquiagem borrada
provavelmente devido às lágrimas que escorriam dos seus olhos e uma aparência
triste como se tivesse perdido o mais querido dos entes. Sem dar tempo de Hugo
pensar mais uma vez ela entrou e o agarrou para um abraço. Ele fechou a porta e
segurou seu rosto entre as mãos. Deixando seus olhos falarem por você, ele
tentou perguntar o que estava acontecendo, sem dizer nada. A preocupação já
estava imensa naquele momento.
- Quero colo! Vou fugir de casa. Posso dormir aqui com você?
- Amor como assim? Seu pai vai nos matar!
Tentou dizer o mais calmo e amável possÃvel. Ela deitou a
cabeça em seu ombro.
- É que... Eu estava andando por ai depois de brigar com
eles e aqui é o único lugar que eu posso ficar até decidir o que fazer... Só
estou com medo?! Minha semana tem sido um pesadelo e eu não volto pra lá antes
das três.
- Ok, só me explica o que aconteceu. Vocês brigaram por
causa da faculdade de novo?
- Não vamos falar disso ta?! Vamos falar da grande fúria do
mundo, pode me dizer até porque o céu é azul e todas essas coisas difÃceis que
você gosta de discutir e eu nunca quero, mas vamos esquecer de mim por um
momento.
- Eu quero te ajudar amor. Mas fica difÃcil sabe? Você me
aparece aqui em casa quase meia noite sabendo que seu pai iria odiar. Tem que
ter um motivo justo. Eu tenho que poder explicar pra ele.
- Explicar o que Hugo?! Pra que?! Meus problemas pra eles
são uma gota d’água, um grão de areia no mar. Contar que eu estou surtando só
vai piorar tudo!
- Então deixe eu te ajudar a não surtar.
- Você sabe que isso não é uma opção.
Hugo se retraiu. Era sempre assim. Alice tinha essa mania de
"surtar" e matar quase todos de susto. Parecia besteira, mas ela não
tinha estrutura e nem cabeça pra agüentar o mÃnimo sofrimento, por isso ele se
preocupava tanto. Mesmo às vezes sendo em vão.
- Ta - ela suspirou - Foi mais uma briga por causa de
faculdade e como eu sou irresponsável. Porra, eu só quero trabalhar no meu
apartamento pra poder sair daquela casa, o que eu faço da minha vida depois é
problema meu.
- Amor nem sempre eles vão entender o que você quer pra sua
vida. Pais têm essa mania super protetora, você não pode culpá-los, tem que
tentar entende-los.
- Ah atitude muito egoÃsta. E quando eles vão me entender?
Essa troca não parece muito justa pra mim.
Ela andou até a sacada e se sentou no sofá que ela mesma
havia colocado lá pra observar o céu. "Vai acabar com meu tédio enquanto
você estiver estudando", foi o que ela usou como desculpa. Depois de se
acomodar ela tirou um maço de cigarros da bolsa, o que sempre fazia nessas
horas, fumar pra se acalmar. Hugo andou até ela, sentou na outra ponta do sofá
e fez sinal para que ela se deitasse no colo dele.
- Me desculpa por ser rude com você. Mas é que... Eu já
morei em tanta casa que eu nem me lembro mais, agora eu moro só com minha mãe e
quando meu pai vem me visitar não fazemos nada além de brigar.
- Costumam dizer que seremos nossos pais quando crescermos,
eu até concordo, mas nós podemos escolher o que vamos herdar deles. Você devia
tentar levar só as coisas boas. Eles também são crianças Alice, no fundo ainda são. Basta conseguir enxergar isso neles.
- Com certeza o gosto pra nomes eu não vou levar. Meu filho
vai ter nome de santo, e eu quero o mais bonito.
Ela disse tentando sorrir, pela primeira vez naquela noite.
Ficaram alguns minutos assim, só olhando o céu e sentindo o vento daquela noite
quando Alice levantou.
- Eu preciso ir, amanha tenho uma entrevista de emprego numa
lanchonete, vai ser minha oportunidade pra terminar meus projetos.
- Isso é ótimo! Dê-me notÃcias quando chegar em casa e me
procure antes de fazer qualquer besteira.
- Você ultimamente tem agido mais como psicólogo do que como
namorado, se é por causa da depressão que você acha que eu tenho pode ir
parando, você sabe que nada do que você disser irá me consolar.
Hugo chamou um táxi e a acompanhou até a portaria e se
despediu com um beijo na testa. Sua vontade era não deixa - lá ir embora e sim
cuidar dela até ter certeza de que ela estaria bem pra sair sozinha por ai.
- Você sabe que eu me preocuparia mesmo se você chegasse
aqui em seu estado normal não é? Suas palavras não me convencem.
- Eu vou ficar bem, de um jeito ou de outro.
Ela se afastou e antes de entrar no táxi disse:
- Na verdade, eu já sei uma maneira de fazer tudo isso
melhorar. Pra todos.
08h01min - sábado - 11 de agosto -
Quando seu telefone tocou naquela manhã pela primeira vez,
Hugo não atendeu. Mas tocou repetidas vezes, até que ele se irritou e resolver
ver o que o desconhecido queria.
- Alô?
- Hugo, eu não sei como te contar.
Era uma mulher, chorando e soluçando, como se tivesse
perdido o bem mais precioso. De inÃcio não reconheceu, mas logo soube que era a
dona Carmem, mãe da Alice. Já começou a se preocupar.
- Carmem a senhora pode me explicar direito? Eu não estou
entendendo nem a senhora direito.
- A Alice... Ela morreu. Ela suicidou essa noite.
- Oque? Onde a senhora está?
- No apartamento dela.
Hugo desligou o telefone e caiu novamente na cama. Ele não
podia acreditar naquelas palavras, só podia ser algum engano. Ele levantou se
segurando pra não desabar ali mesmo. Ele precisava saber o que havia
acontecido. Trocou de roupa, desceu as escadas e entrou no primeiro táxi que
passou por ali. Logo chegou ao prédio onde ficava o apartamento da Alice.
Aparentemente não havia nenhuma movimentação, mas ao entrar percebeu que não
havia como acreditar em engano. Todos se localizavam no jardim: policiais,
familiares e perÃcia em volta do corpo sem vida. Primeiro ficou zonzo, achou
que ia desmaiar ou morrer ali junto com a pessoa que mais amou na vida. Ela
havia se jogado da janela do quinto andar depois de tomar um coquetel de
remédios, segundo os médicos. Ela havia dado sinais, ele só não podia imaginar
que ela teria coragem de fazer aquilo com todos. Dona Carmem o acolheu com um
abraço e ele deixou o sofrimento se transformar em lágrimas e mais lágrimas.
Uma semana após o enterro, ele ainda estava em casa. Não
atendia ninguém, não trabalhava, nem sequer comia. Só a dor o fazia companhia. Alguém
chamou a porta. "Mais trabalho" ele pensou. Mas tocou uma segunda vez,
e uma terceira e continuou tocando, até ele se levantar e abrir a porta. Era a
dona Carmem, com um rosto melhor, mas que não escondia o sofrimento. Ele fez
sinal para que ela entrasse, mas ela só abriu a bolsa e tirou uma chave lá de
dentro.
- É do apartamento da Alice, eu achei que você deveria ir
até lá pela última vez antes de arrumarmos pra vender.
Ele pegou a chave, agradeceu e voltou para dentro de casa
sem pensar muito bem no que fazer. Fazia apenas uma semana e eles já iam vender
a única coisa que realmente os fariam lembrar-se dela? A única coisa que a
deixava feliz? A raiva começou a tomar forma e ele chorou mais uma vez,
culpando todos pelo que havia acontecido. Acordou no tapete da sala, com uma
garrafa de vodka do lado e sem lembrar o que tinha feito. Quando tentou se
levantar a cabeça latejou, como se estivesse levado à maior surra da sua vida.
"É só ressaca" ele lembrou. Havia bebido pra esquecer a dor, mas lá
estava ela novamente, firme e forte, provando que não ia embora tão cedo, se é
que ia embora algum dia. Olhou pra sua mesa de centro e viu a chave.
Ele precisava ir até lá. Tomou um banho, passou na lanchonete
que ficava na rua do seu prédio para tomar um café, o que não fazia há algum
tempo, pegou um táxi e foi para o apartamento. Chegando lá não teve sequer
coragem de passar pelo jardim, onde Alice havia sido encontrada. Decidiu subir
de escadas mesmo sendo no quinto andar, Alice odiava elevadores. Chegou e abriu
a porta, hesitando em entrar. Tudo estava do mesmo jeito, pelo menos esse
desejo dela haviam respeitado. Era um apartamento pequeno e ainda em reforma,
sala, cozinha, banheiro e dois quartos: um que ela usaria pra dormir e outro
que iria ser o ateliê, de onde ela se jogou. Hugo se sentou numa poltrona velha
e empoeirada que ficava no canto da sala e começou a se lembrar de quando foi
ali pela primeira vez. Alice procurava um lugar pra morar quando terminasse a
faculdade de artes plásticas e pudesse pagar as próprias contas. Não foi o
melhor apartamento que ela encontrou, mas ela escolheu aquele, pois tinha
"cara de artista" como ela dizia. Ele sentiu a falta dela mais uma
vez. Já tinha se cansado de procurar um motivo, mas porque ela não se despediu
dele? Ele a amava tanto. Levantou e foi até ao cômodo do qual ela se jogara. As
paredes tinham um fundo azul e várias manchas de cores aleatórias, como se ela
tivesse jogado balões de tinta por diversão. Havia estátuas e esculturas
espalhadas pelos cantos e uma pequena escrivaninha, com vários cofres de todas
as formas e tamanhos que eram da sua coleção. Todos achavam estranho, mas ele achava
fascinante o motivo daquilo: "Só guardamos em cofres coisas que não podem
ser vistas, coisas que ninguém poderia descobrir, como segredos. Eu tenho
muitos segredos, daà a ideia de colecionar cofres." Resolveu que guardaria
todas as coisas que estavam ali e importavam pra Alice. Avistou uma caixa no
canto da parede e quando a abriu havia um pequeno envelope azul. Era clichê
demais pensar que ela deixaria o envelope num lugar que só ele poderia achar. O pegou com cuidado e observou se era endereçado a alguém. Não havia nome, nem nada escrito por fora. Abriu e dentro havia um pequeno papel dobrado, o abriu e imediatamente soube que era pra ele.
Hugo,
Sei que neste momento você deve estar se perguntando porque eu fiz isso, porque eu deixei você, porque eu fiz essa escolha tão fácil mas nada corajosa pra acabar com o meu sofrimento. Mas como eu sempre te dizia, nada me consola. Mas eu estou escrevendo essa carta na tentativa de consolar você. De todas as pessoas do mundo eu consegui achar o único cara que me aguentava fumando no seu apartamento, mesmo sendo todo certinho. O cara que me ouvia falar das coisas mais banais, que aguentava meus surtos, que cuidava de mim mesmo quando eu insistia em gritar que eu já era adulta e responsável o suficiente pra tomar conta dos meus problemas. O cara que tentava me ensinar fÃsica, porra, todo mundo sabe que eu reprovei em fÃsica. Mas era o seu desafio diário e parecia que você não ia desistir nunca. Acredite em mim, eu te amava mais que qualquer coisa, mais do que eu amava esse apartamento, que com certeza será vendido pra uma pessoa qualquer, depois de ser pintado, claro. Não culpo meus pais por isso, eles tem razão e eu sei que você vai querer contraria-los dessa vez. Mas esse lugar sempre irá lembrar todas as tristezas que eu contia. Eu te amava porque você nunca ia desistir de mim. E meu amor, eu não desisti de você. Eu te dei a saÃda pra uma vida normal e feliz. Porque eu sei que você merece mais que qualquer pessoa nesse mundo. Não estou no meu juÃzo perfeito, já é tarde e eu não tenho certeza se hoje é mesmo 29 de julho, são os remédios. Mas guardarei essa carta porque sei que a usarei um dia, e está chegando perto. Te peço que guarde somente os cofres, dentro deles eu realmente guardei todos os segredos, a senha é a data do meu aniversário ao contrário. Fácil né, eu sei. Mas eu nunca fui inteligente o suficiente pra esconder algo de alguém. Não importa o que aconteça, seja feliz, termine sua faculdade, realize seus sonhos. Não tente me homenagear de alguma forma, eu não merecia. Basta colocar um nome bonito no seu filho, um nome de santo, de preferência. Eu te amei o quanto eu pude.
Alice
Hugo ficou sem reação. Ela se despediu. Sem motivos justos, com um pouco de egocentrismo que era caracterÃstico dela, mas se despediu. Foi em direção a escrivaninha e abriu o primeiro cofre. Dentro dele havia uma caixinha com várias fotos. Só se via uma Alice sorridente no meio de uma rua escura segurando um feixe de luz, com alguns amigos, sentada em volta de uma fogueira, dentro de uma barraca lotada de garotas. Atrás estava escrito á caneta "primeira vez que eu fugi de casa, dezembro de 2007". Pela primeira vez depois de muitos dias ele sorriu. Ela deixou o que tinha de mais precioso pra ele e por isso, ele não a culparia mais. Guardaria todas aquelas pequenas coisas e uma lembrança boa da pessoa que Alice era quando estava bem. Ela não vai voltar, mas vou leva-lá sempre comigo. "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã..." já diziam os chineses.
-
“Essa música é sobre suicÃdio. Ela é muito, muito séria. Me desgasta pra caralho quando a gente toca, e as pessoas não percebem. É sobre uma menina que tem problemas com os pais. Ela se jogou da janela do quinto andar e não existe amanhã… Eu não aguentaria ouvi-la duas vezes seguidas. Eu gostaria, então, que as pessoas prestassem atenção na letra e vissem que é uma coisa muito forte.”
Renato Russo.
Temos que aprender a ouvir o silêncio das pessoas. Muitas pessoas choram com um sorriso estampado no rosto.
ResponderExcluirExatamente Gabi !
ExcluirLiiindo����
ResponderExcluir♥♥♥♥
ExcluirU.u vc escreve melhor do que o esperado ^_^
ResponderExcluirObrigada haha <3
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